domingo, 18 de março de 2012

Os Cachimbos dos Sábios

Isto não é um cachimbo.

     Na escuridão da noite, um vento quente e úmido soprava do Mediterrâneo. No alto do monte Tablas, um grego, já velho, caminhava em direção à 7ª Academia. Trajava uma túnica branca e levava consigo um pequeno alforje e um cajado antigo, quase tanto quanto o velho. Seus cabelos ralos escorriam pelos cantos da cabeça e o topo era nu, como uma montanha coberta de neve somente nas laterais. Sua barba branca era volumosa, e descia até a penúltima costela; seu nariz não era pontudo, mas era proeminente; por baixo das sobrancelhas brancas, olhos azuis desafiavam e examinavam o mundo, revelando que aquele era um homem pensador.
      Ao se aproximar da entrada da 7ª Academia, reparou no novo pórtico, com uma tabuleta em branco, dirigiu-se às raízes de uma oliveira próxima, onde apanhou uma chave e destrancou a porta. Guardou novamente a chave em seu esconderijo, entrou e trancou a porta com outra chave, que ficava do lado de dentro. Foi direto para a sala do fogo, onde toda noite os moradores da 7ª Academia se reuniam para aprender com o fogo, com reflexões e com histórias do passado. Mais tarde iriam para o terraço, onde aprendiam com as estrelas e com a lua. Durante o dia aprendiam com os animais, com as plantas, com o sol, com a terra, com a pedra, com o rio, com as nuvens... enfim, com a luz e tudo que esta revela. Nessa noite, nosso velho estava ali para contar uma história. Ao entrar na sala do fogo, o ancião se dirigiu ao centro do anfiteatro, onde uma fogueira baixa ardia em chamas. A fumaça subia e escapava por aberturas engenhosas no teto. Quando os presentes repararam no ancião, em pé, ao lado do fogo, providenciaram-lhe assento, silêncio atenção em todos seus movimentos e falas. Alguns até anotavam o que viam ou pensavam naquele momento. Então o ancião falou:
      - Contarei hoje a história sobre os Cachimbos dos Sábios.
      Nesse instante uma tora na fogueira quebrou-se e crepitou, e faíscas dançaram no ar atrás do velho. E ele se levantou e continuou:
      - Há 200 anos atrás, os sábios descobriram, através do estudo das ervas, uma erva que, de modo prazeroso, elucidava a mente, clareava os pensamentos, aumentava a atenção e permitia um foco mental mais duradouro que o normal. Bastava inalar a erva queimando. Porém, essa erva, se utilizada em excesso retardava a capacidade reflexiva e podia até levar à embriaguez. Sendo pois mais difícil abster-se dessa erva do que do vinho, os sábios restringiram-na para seu próprio grupo, e se dedicaram a seu estudo e uso. Muitos distinguiam o sábio do tolo através do uso de tal erva: o tolo não conseguia parar de usar a erva, já o sábio tinha total autocontrole e sempre utilizava a quantidade correta dela. Alguns sábios desenvolveram potes que sempre continham a quantidade exata que podiam inalar da erva; já outros fabricaram potes onde eles não só guardavam a quantidade ideal de erva para seu uso como podiam queimá-la no próprio pote sem danificá-lo. Desse modo a arte de produção do pote-de-erva foi-se aperfeiçoando, até que Neáfocles de Siracusa, considerado sábio entre os sábios, desenvolveu o que chamou de cachimbo, e que usamos até hoje. Isso foi há 190 anos.
      "Nessa época foi convocada uma assembleia na ágora de Neápolis, e 400 amantes da sabedoria, incluindo alguns sábio e os sábios entre os sábios compareceram. Isso foi há 170 anos, quando a maior parte dos sábios já usava cachimbo. Nessa assembleia eles criaram os Cachimbos dos Sábios, que eram 24 Cachimbos Maiores e 24 Cachimbos Menores, sendo cada um representado por uma letra*. Os Maiores eram representados por letras maiúsculas e os Menores por letras minúsculas. Esses Cachimbos haviam sido fabricados de modo que o alfa maiúsculo (A), o melhor de todos, continha entalhes de ouro e prata, boquilha de marfim e uma estrutura de cedros fenícios. Já o ômega minúsculo (ω) fora entalhado à faca em um galho qualquer de oliveira e a gravação da letra ω era o único entalhe decorativo.
      "Os Cachimbos foram sorteados entre os presentes na grande assembleia de Neápolis. Contudo, seus portadores, se reconhecessem em alguém sabedoria superior à sua, deveriam dar seu cachimbo para essa pessoa. Caso esse indivíduo já fosse portador de um Cachimbo, o doador trocaria de Cachimbo com ele se o Cachimbo dele (do indivíduo) fosse  menor que o seu, e nada aconteceria se o mais sábio já possuísse um Cachimbo superior na hierarquia. Logo, ao término da assembleia os portadores originais dos Cachimbos já os haviam repassado para aqueles que consideravam mais sábios, e 48 sábios, sendo 37 destes considerados sábios entre os sábios, deixaram Neápolis carregando Cachimbos.
      O Cachimbo A (alfa maiúsculo) estava de posse de Hadêmides de Éfeso, que o portou orgulhosamente por 20 anos. Mas quando conheceu Sócrates e o ouviu, deu-lhe o Cachimbo A, na grande estrada de Tessalônica. Sócrates, incapaz de rejeitar o Cachimbo A, apressou-se a tomar um navio para Salmona, na ilha de Creta, onde morava o portador do Cachimbo ω (ômega minúsculo), o filósofo Saleto. Correu até ele e trocou de Cachimbo com Saleto, afirmando merecer o menor dos Cachimbos, pois só sabia que nada sabia. Saleto, admirado com a humildade de Sócrates, resolveu seguir-lhe os passos, e deu o Cachimbo A a um de seus escravos. Este escravo, por sua vez, o vendeu a um comerciante local, que, por sua vez, o vendeu a um mercador fenício de partida para Tiro. Este mercador, por sua vez, no caminho para Tiro, foi ter com Partênsio, governador da ilha de Chipre, e vendeu-lhe o Cachimbo A, que tal governador logo reconhecera como o maior Cachimbo dos Sábios e o desejara para si.
       "Assim despertaram os sábios e reconheceram a humildade como virtude da sabedoria e característica do sábio, e passaram a evitar os Cachimbos Maiores, e a buscar os Menores. Pois sabiam que os mais sábios eram os mais humildes e tinham os menores de todos os Cachimbos, e os menos sábios possuíam os maiores de todos os Cachimbos. Prova disso eram Sócrates, O Sábio, portador do menor Cachimbo e Partênsio, o tolo governador de Chipre, portador do maior Cachimbo. Foi assim que, nessa época, oito dos considerados sábios entre os sábios perceberam com clareza que o Cachimbo ω tornara-se o novo melhor Cachimbo, e o Cachimbo A tornara-se o novo pior. Desses oito, cinco optaram por enaltecerem a si próprios aparentando humildade, buscando os menores Cachimbos (os novos maiores) e a fama de sábios. Os outros três, passaram a não atentar para o Cachimbo de alguém para julgá-lo sábio ou tolo, e voltaram às origens do jogo de Cachimbos: davam os Cachimbos maiores para quem julgavam mais sábios.
       "Dois anos depois, isto é, há 145 anos atrás, um desses três convocou a assembleia dos sábios novamente em Neápolis, e afirmou que um sábio deve reconhecer outro sábio não por um cachimbo que este carrega, mas por suas ações e palavras. Em seguida propôs o fim dos Cachimbos dos Sábios. Após muito refletir, a assembleia concordou com ele, e todos os Cachimbos foram confiscados e guardados em Atenas. Hoje se encontram nos tesouros históricos da 1ª Academia.
        "Pois que aquele que nada ouviu desta história até este momento, se tiver ouvidos para ouvir, ouça isto: o orgulhoso não é sábio, mas insensato, e como palha lançada ao fogo são sua fama e suas ideias. Mas aquele que é humilde é sábio e é sensato, e mesmo que não adquira fama alguma, suas ideias durarão mais que um tronco grosso de carvalho lançado numa fogueira."
        Nesse momento o velho apanhou suas coisas e saiu, sem dizer seu nome ou sua cidade, e, após agradecer a oportunidade de contar sua história, partiu com destino à 8ª Academia, recontar a história dos Cachimbos dos Sábios para aqueles que amavam a sabedoria e a almejavam.


* Do alfabeto grego.

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